quinta-feira, 18 de março de 2010

TÉDIO - Baudelaire

Tenho as recordações d'um velho milenário!

Um grande contador, um prodigioso armário,
Cheiinho, a abarrotar, de cartas memoriais,
Bilhetinhos de amor, recibos, madrigais,
Mais segredos não tem do que eu na mente abrigo.
Meu cer'bro faz lembrar descomunal jazigo;
Nem a vala comum encerra tanto morto!


— Eu sou um cemitério estranho, sem conforto,
Onde vermes aos mil — remorsos doloridos,
Atacam de pref'rência os meus mortos queridos.
Eu sou um toucador, com rosas desbotadas,
Onde jazem no chão as modas despresadas,
E onde, sós, tristemente, os quadros de Boucher
Fuem o doce olor d'um frasco de Gellé.


Nada pode igualar os dias tormentosos
Em que, sob a pressão de invernos rigorosos,
O Tédio, fruto inf'liz da incuriosidade,
Alcança as proporções da Imortalidade.


— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d'um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!


Charles Baudelaire, em "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães

quarta-feira, 17 de março de 2010

O Artista - Oscar Wilde


Um dia, despertou-lhe na alma o desejo de esculpir uma estátua do Prazer que dura um instante. E partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar o bronze. Mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e em nenhuma parte o metal seria encontrado, a não ser na estátua da Dor que é permanente.
E fora ele que, com as próprias mãos, fundira essa estátua, erigindo-a no túmulo de alguém a quem muito amara na vida. E na tumba da morta, que tanto amara, colocou a própria criação, como um símbolo do amor masculino, que é imortal, e a dor humana, que dura a vida inteira.
E em todo o mundo não havia bronze, a não ser o dessa estátua.
Ele, então, retirou a estátua que moldara, pô-la num grande forno, deixando-a derreter-se.
E com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.

Ah! Os relógios... - Mário Quintana


Amigos, não consultem os relógios

quando um dia eu me for de vossas vidas

em seus fúteis problemas tão perdidas

que até parecem mais uns necrológios...


Porque o tempo é uma invenção da morte:

não o conhece a vida - a verdadeira -

em que basta um momento de poesia

para nos dar a eternidade inteira.


Inteira, sim, porque essa vida eterna

somente por si mesma é dividida:

não cabe, a cada qual, uma porção.


E os Anjos entreolham-se espantados

quando alguém - ao voltar a si da vida -

acaso lhes indaga que horas são...