quinta-feira, 25 de março de 2010

Almoço Mineiro - RUBEM BRAGA

Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, trêsdiplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.

Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal.

Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública , nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.

Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas.

Era o encanto de Minas.

São Paulo, 1934

segunda-feira, 22 de março de 2010

MULHERES - Luis Fernando Veríssimo

"Certo dia parei para observar as mulheres e só pude concluir uma coisa: elas não são humanas. São espiãs. Espiãs de Deus, disfarçadas entre nós.
Pare para refletir sobre o sexto-sentido.
Alguém duvida de que ele exista?
E como explicar que ela saiba exatamente qual mulher, entre as presentes, em uma reunião, seja aquela que dá em cima de você?
E quando ela antecipa que alguém tem algo contra você, que alguém está ficando doente ou que você quer terminar o relacionamento?
E quando ela diz que vai fazer frio e manda você levar um casaco? Rio de Janeiro, 40 graus, você vai pegar um avião pra São Paulo. Só meia-hora de vôo. Ela fala pra você levar um casaco, porque "vai fazer frio". Você não leva. O que acontece?
O avião fica preso no tráfego, em terra, por quase duas horas, depois que você já entrou, antes de decolar. O ar condicionado chega a pingar gelo de tanto frio que faz lá dentro!
"Leve um sapato extra na mala, querido.
Vai que você pisa numa poça..."
Se você não levar o "sapato extra", meu amigo, leve dinheiro extra para comprar outro. Pois o seu estará, sem dúvida, molhado...
O sexto-sentido não faz sentido!
É a comunicação direta com Deus!
Assim é muito fácil...
As mulheres são mães!
E preparam, literalmente, gente dentro de si.
Será que Deus confiaria tamanha responsabilidade a um reles mortal?
E não satisfeitas em ensinar a vida elas insistem em ensinar a vivê-la, de forma íntegra, oferecendo amor incondicional e disponibilidade integral.
Fala-se em "praga de mãe", "amor de mãe", "coração de mãe"...
Tudo isso é meio mágico...
Talvez Ele tenha instalado o dispositivo "coração de mãe" nos "anjos da guarda" de Seus filhos (que, aliás, foram criados à Sua imagem e semelhança).
As mulheres choram. Ou vazam? Ou extravazam?
Homens também choram, mas é um choro diferente. As lágrimas das mulheres têm um não sei quê que não quer chorar, um não sei quê de fragilidade, um não sei quê de amor, um não sei quê de tempero divino, que tem um efeito devastador sobre os homens...
É choro feminino. É choro de mulher...
Já viram como as mulheres conversam com os olhos?
Elas conseguem pedir uma à outra para mudar de assunto com apenas um olhar.
Elas fazem um comentário sarcástico com outro olhar.
E apontam uma terceira pessoa com outro olhar.
Quantos tipos de olhar existem?
Elas conhecem todos...
Parece que freqüentam escolas diferentes das que freqüentam os homens!
E é com um desses milhões de olhares que elas enfeitiçam os homens.
EN-FEI-TI-ÇAM !
E tem mais! No tocante às profissões, por que se concentram nas áreas de Humanas?
Para estudar os homens, é claro!
Embora algumas disfarcem e estudem Exatas...
Nem mesmo Freud se arriscou a adentrar nessa seara. Ele, que estudou, como poucos, o comportamento humano, disse que a mulher era "um continente obscuro".
Quer evidência maior do que essa?
Qualquer um que ama se aproxima de Deus.
E com as mulheres também é assim.
O amor as leva para perto dEle, já que Ele é o próprio amor. Por isso dizem "estar nas nuvens", quando apaixonadas.
É sabido que as mulheres confundem sexo e amor.
E isso seria uma falha, se não obrigasse os homens a uma atitude mais sensível e respeitosa com a própria vida.
Pena que eles nunca verão as mulheres-anjos que têm ao lado.
Com todo esse amor de mãe, esposa e amiga, elas ainda são mulheres a maior parte do tempo.
Mas elas são anjos depois do sexo-amor.
É nessa hora que elas se sentem o próprio amor encarnado e voltam a ser anjos.
E levitam.
Algumas até voam.
Mas os homens não sabem disso.
E nem poderiam.
Porque são tomados por um encantamento
que os faz dormir nessa hora."