sábado, 30 de janeiro de 2010

O retrato oval. - Edgar Allan Poe

O retrato oval

O castelo em que o meu criado se tinha empenhado em entrar pela força, de preferência a deixar-me passar a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses edifícios com um misto de soturnidade e de grandeza que durante tanto tempo se ergueram nos Apeninos, não menos na realidade do que na imaginação da senhora Radcliffe. Tudo dava a entender que tinha sido abandonado recentemente. Instalámo-nos num dos compartimentos mais pequenos e menos sumptuosamente mobilados, situado num remoto torreão do edifício. A decoração era rica, porém estragada e vetusta. Das paredes pendiam colgaduras e diversos e multiformes trofeus heráldicos, misturados com um desusado número de pinturas modernas, muito alegres, em molduras de ricos arabescos doirados. Por esses quadros que pendiam das paredes - não só nas suas superfícies principais como nos muitos recessos que a arquitectura bizarra tornara necessários - , por esses quadros, digo, senti despertar grande interesse, possivelmente por virtude do meu delírio incipiente; de modo que ordenei a Pedro que fechasse os maciços postigos do quarto, pois que já era noite; que acendesse os bicos de um alto candelabro que estava à cabeceira da minha cama e que corresse de par em par as cortinas franjadas de veludo preto que envolviam o leito. Quis que se fizesse tudo isto de modo a que me fosse possível, se não adormecesse, ter a alternativa de contemplar esses quadros e ler um pequeno volume que acháramos sobre a almofada e que os descrevia e criticava.

Por muito, muito tempo estive a ler, e solene e devotamente os contemplei. Rápidas e magníficas, as horas voavam, e a meia-noite chegou. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade para não perturbar o meu criado que dormia, coloquei-o de modo a que a luz incidisse mais em cheio sobre o livro.

Mas o movimento produziu um efeito completamente inesperado. A luz das numerosas velas (pois eram muitas) incidia agora num recanto do quarto que até então estivera mergulhado em profunda obscuridade por uma das colunas da cama. E assim foi que pude ver, vivamente iluminado, um retrato que passava despercebido. Era o retrato de uma jovem que começava a ser mulher. Olhei precipitadamente para a pintura e acto contínuo fechei os olhos. A principio, eu próprio ignorava por que o fizera. Mas enquanto as minhas pálpebras assim permaneceram fechadas, revi em espírito a razão por que as fechara. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar - para me certificar que a vista não me enganava -, para acalmar e dominar a minha fantasia e conseguir uma observação mais calma e objectiva. Em poucos momentos voltei a contemplar fixamente a pintura.

Que agora via certo, não podia nem queria duvidar, pois que a primeira incidência da luz das velas sobre a tela parecera dissipar a sonolenta letargia que se apoderara dos meus sentidos, colocando-me de novo na vida desperta.

O retrato, disse-o já, era de uma jovem. Apenas se representavam a cabeça e os ombros, pintados à maneira daquilo que tecnicamente se designa por vinheta - muito no estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o peito, e inclusivamente as pontas dos cabelos radiosos, diluíam-se imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que constituía o fundo. A moldura era oval, ricamente doirada e filigranada em arabescos. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável que o retrato em si. Mas não pode ter sido nem a execução da obra nem a beleza imortal do rosto o que tão subitamente e com tal veemência me comoveu. Tão-pouco é possível que a minha fantasia, sacudida da sua meia sonolência, tenha tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Compreendi imediatamente que as particularidades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado por completo uma tal ideia - devem ter evitado inclusivamente qualquer distracção momentânea. Meditando profundamente nestes pontos, permaneci, talvez uma hora, meio deitado, meio reclinado, de olhar fito no retrato. Por fim, satisfeito por ter encontrado o verdadeiro segredo do seu efeito, deitei-me de costas na cama. Tinha encontrado o feitiço do quadro na sua expressão de absoluta semelhança com a vida, a qual, a princípio, me espantou e finalmente me subverteu e intimidou. Com profundo e reverente temor, voltei a colocar o candelabro na sua posição anterior. Posta assim fora da vista a causa da minha profunda agitação, esquadrinhei ansiosamente o livro que tratava daqueles quadros e das suas respectivas histórias. Procurando o número que designava o retrato oval, pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem:

«Era uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre. E maldita foi a hora em que viu, amou e casou com o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, tendo já na Arte a sua esposa. Ela, uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre, toda luz e sorrisos, e vivaz como uma jovem corça; amando e acarinhando a todas as coisas; apenas odiando a Arte que era a sua rival; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros enfadonhos instrumentos que a privavam da presença do seu amado. Era pois coisa terrível para aquela senhora ouvir o pintor falar do seu desejo de retratar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente e posou docilmente durante muitas semanas na sombria e alta câmara da torre, onde a luz apenas do alto incidia sobre a pálida tela. E o pintor apegou-se à sua obra que progredia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, veemente e caprichoso, que se perdia em divagações, de modo que não via que a luz que tão sinistramente se derramava naquela torre solitária emurchecia a saúde e o ânimo da sua esposa, que se consumia aos olhos de todos menos aos dele. E ela continuava a sorrir, sorria sempre, sem um queixume, porque via que o pintor (que gozava de grande nomeada) tirava do seu trabalho um fervoroso e ardente prazer e se empenhava dia e noite em pintá-la, a ela que tanto o amava e que dia a dia mais desalentada e mais fraca ia ficando. E, verdade seja dita, aqueles que contemplaram o retrato falaram da sua semelhança com palavras ardentes, como de um poderosa maravilha, - prova não só do talento do pintor como do seu profundo amor por aquela que tão maravilhosamente pintara. Mas por fim, à medida que o trabalho se aproximava da sua conclusão, ninguém mais foi autorizado na torre, porque o pintor enlouquecera com o ardor do seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o rosto da esposa. E não via que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces daquela que posava junto a ele. E quando haviam passado muitas semanas e pouco já restava por fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da senhora vacilou como a chama de uma lanterna. Assente a pincelada e feito o retoque, por um momento o pintor ficou extasiado perante a obra que completara; mas de seguida, enquanto ainda a estava contemplando, começou a tremer e pôs-se muito pálido, e apavorado, gritando em voz alta 'Isto é na verdade a própria vida!', voltou-se de repente para contemplar a sua amada: - estava morta!»

fonte: Textos & Contextos

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Isto - Fernando Pessoa




Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Florbela Espanca

"Até agora eu não me conhecia,

julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia
mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!
Andava a procurar-me - pobre louca!-
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
E a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!"

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Treze fantasmas - Clark Ashton Smith


“Tenho sido fiel, Cínara, à minha maneira.”

John Alvitong tratou de levantar-se sobre o travesseiro enquanto murmurava para si a citação amplamente conhecida do poema de Downson. Porém sua cabeça e seus ombros caíram para trás com transbordante impotência, e se filtrou por seu cérebro como um fio de água gelada a compreensão de que talvez o doutor tivesse razão – talvez o final fosse realmente iminente. Pensou brevemente em fluídos de embalsamar, flores secas, cravos de ataúde e gramados murchos; mas tais idéias eram bastante distantes da tendência de seu pensamento, e preferiu pensar em Elspeth. Afastou seus fúnebres pensamentos com um conveniente estremecimento.

Muitas vezes pensava em Elspeth, nesses dias. Porém não a esquecia realmente em nenhum momento. Muita gente o chamava de sem-vergonha; porém ele sabia, e sempre haveria de saber, que estavam errados. Diziam que havia rasgado ou partido o coração de doze mulheres, incluindo os de suas duas esposas; e de um modo o suficientemente estranho, incluindo os exageros dos fofoqueiros, o número era correto. Contudo, ele, John Alvington, sabia com certeza que somente uma mulher, a que nada contava entre as doze, havia realmente importado realmente alguma vez em sua vida.

Havia amado a Elspeth e a ninguém mais. As outras mulheres foram todas um erro, ilusões: haviam lhe atraído só porque imaginou, durante períodos variáveis, que havia encontrado nelas algo de Elspeth. Havia sido cruel com elas provavelmente, e com absoluta certeza não lhes havia sido fiel. Porém ao enganá-las, não havia sido muito mais leal à Elspeth?

De algum modo a imagem que tinha dela agora era mais clara, mais do que antes. Como se tivesse sacudido o pó acumulado de um retrato, via com estranha claridade a inquieta ironia de seus olhos e o ligeiro sacudir de seus cabelos castanhos que sempre acompanhava seu sorriso jovial. Era inesperadamente alta para uma pessoa tão semelhante a um duende, porém tanto mais admirável por isso; e ele nunca havia gostado de outra coisa a não ser de mulheres altas.
Com tanta freqüência tinha ficado maravilhado, como ante um fantasma, ao encontrar outra mulher de maneiras similares, similar figura ou expressão de olhos ou cadência de voz; e que absoluta foi sua decepção quando chegou a ver a irrealidade e falsidade do que era parecido. Que irreparavelmente ela, o amor verdadeiro, se havia interposto antes ou depois entre ele e todas as demais.

Começou a recordar coisas que quase havia esquecido, tais como o camafeu que ela havia levado depois do dia em que se conheceram, e um pequeno sinal em seu ombro esquerdo, de que havia olhado numa ocasião quando ela usava um vestido por demais decotado para aquela época. Muito recordava a roupagem lisa e verde-pálido que se aderia tão deliciosamente em sua esbelta silhueta naquela manhã em que ele se foi precipitadamente com um rápido adeus, para não voltar a vê-la...

Nunca, pensava, havia sido sua memória tão boa: seguramente o médico estava equivocado, pois não se havia produzido debilidade alguma de suas faculdades. Era quase impossível que estivesse mortalmente enfermo, quando podia evocar todas as lembranças de Elspeth com tal desenvoltura e clareza.

Agora repassava todos os dias de seu compromisso de sete meses, que podia ter terminado em um ditoso casamento se não tivesse sido por sua propensão a tomar ofensas irracionais, e pela própria explosão de temperamento com que reagia e sua falta de tática conciliatória na disputa crucial. Que próximo, que doloroso resultava tudo. Perguntou a si mesmo que malvado desígnio havia ordenado sua separação e o havia enviado a uma busca vã de um rosto a outro rosto ilusório para o resto de sua vida.

Não recordava, não podia recordar outras mulheres – somente lembrava que havia sonhado de algum modo por um breve espaço de tempo que se pareciam com Elspeth. Outros poderiam considerá-lo um Don Juan – porém ele se considerava um sentimental sem remédio, se é que alguma vez houve algum.

Que ruído era aquele, perguntou a si mesmo. Alguém havia aberto a porta de casa? Devia ser a enfermeira, pois ninguém mais viria a essa hora da tarde.

A enfermeira era uma moça agradável, porém não era como Elspeth.

Tentou virar-se um pouco para poder vê-la, e de alguma maneira conseguiu, graças a um esforço titânico completamente desproporcional ao fraco movimento.

Não era a enfermeira, pois ela ia sempre vestida de um branco imaculado que correspondia à sua profissão. Esta mulher trajava um vestido de cor verde viçoso e agradável, pálido como o verde da água na superfície do mar. Não pôde ver seu rosto, pois permanecia em pé com as costas para a cama; porém havia algo estranhamente familiar naquele vestido, algo que quase não podia recordar, a princípio. Logo, com um claro sobressalto, supôs que se parecia com o vestido que Elspeth levava no dia de sua disputa, o mesmo vestido que havia estado representando um pouco antes. Ninguém usava nunca um vestido de semelhantes medidas e estilo, hoje em dia. Quem em todo o mundo poderia ser? Havia uma curiosa familiaridade com respeito a sua figura, também, pois era bastante alta e esbelta.

A mulher se voltou, e John Alvington viu que era Elspeth – a própria Elspeth da qual se havia separado com um amargo adeus, e que havia morrido sem permitir-lhe sequer vê-la outra vez. E contudo como poderia ser Elspeth, se estava morta a tanto tempo? Logo, por uma questão de lógica, como poderia ela haver morrido alguma vez, posto que estivesse ali, diante dele, naquele momento? Parecia infinitamente preferível crer que estava viva, e ele desejava tanto falar-lhe, porem a voz falhou quando tentou pronunciar seu nome.

Agora pensou que ouvia a porta abrir-se outra vez, e foi consciente de que outra mulher permanecia nas sombras atrás de Elspeth. Essa se adiantou, e observou que trajava um vestido verde, idêntico em cada detalhe àquele que usava sua amada. Ela levantou a cabeça – e o rosto era o de Elspeth, com os mesmos olhos zombadores e boca caprichosa. Porém como podia haver duas Elspeths?

Com profundo desconcerto, tratou de acostumar-se a extravagante idéia; e ainda assim, enquanto lutava com um problema tão incompreensível, uma terceira figura de verde pálido, seguida por uma quarta e uma quinta, entrou e se colocou atrás das duas primeiras. E não foram estas as últimas, pois outras entraram uma a uma, até que o quarto ficou repleto de mulheres, todas elas com os modos e aparência de sua noiva morta.

Nenhuma delas pronunciou uma palavra, porém todas olhavam Alvington com uma expressão na qual parecia agora discernir um gracejo mais profundo que o travesso encanto que uma vez havia encontrado nos olhos de Elspeth.







Ficou muito quieto, lutando com uma obscura e terrível perplexidade. Como podia haver tal multidão de Elspeths, quando ele só podia lembrar de ter conhecido uma? E quantas havia de todo modo? Algo o impulsionou a contá-las, e achou que havia treze fantasmas de verde. E após assegurar-se deste ato, se sentiu sacudido por algo familiar com respeito ao número. Não dizia o povo que ele havia partido o coração de treze mulheres? Ou eram no total somente doze? De qualquer maneira, contando a própria Elspeth, quem realmente havia partido o coração, havia treze.







Então todas as mulheres começaram a agitar seus cabelos, de uma maneira que ele recordava muito bem, e todas elas riram com uma risada ligeira e brincalhona. Poderiam estar rindo dele? Elspeth havia feito isso muitas vezes, porém ele a havia amado com devoção apesar de tudo...







De repente, começou a sentir-se inseguro acerca do numero exato de figuras que enchiam sua morada; pareceu-lhe, em um momento, que eram mais do que havia contado, e depois, que eram menos. Perguntou-se quem dentre elas era a verdadeira Elspeth, porque depois de tudo sentiu confiança de que nunca havia existido uma segunda – só uma série de mulheres que se assemelhavam em aparência e que não eram em realidade como ela de modo algum, uma vez que chegava a conhecê-las.







Finalmente, conforme tratava de contá-las e escrutar os rostos apinhados, todos se tornaram imprecisos, confusos e indefinidos, e quase esqueceu o que estava tratando de fazer...Qual delas era Elspeth? Ou será que havia existido alguma vez uma autêntica Elspeth? Não estava seguro de nada, no final, quando chegou o esquecimento e passou a esse território no qual não existem nem as mulheres, nem os fantasmas, nem o amor e nem os problemas numéricos.







Traduzido por Rogério Silvério de Farias.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Cemitério Pernambucano - João Cabral de Melo Neto

CEMITÉRIO PERNAMBUCANO(Nossa Senhora da Luz)

Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.


Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.




                                              Vêm em redes de varandas
                                              abertas ao sol e à chuva.
                                              Trazem suas próprias moscas.
                                              O chão lhes vai como luva.

                                              Mortos ao ar-livre, que eram,
                                              hoje à terra-livre estão.
                                              São tão da terra que a terra
                                              nem sente sua intrusão.


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