quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Treze fantasmas - Clark Ashton Smith


“Tenho sido fiel, Cínara, à minha maneira.”

John Alvitong tratou de levantar-se sobre o travesseiro enquanto murmurava para si a citação amplamente conhecida do poema de Downson. Porém sua cabeça e seus ombros caíram para trás com transbordante impotência, e se filtrou por seu cérebro como um fio de água gelada a compreensão de que talvez o doutor tivesse razão – talvez o final fosse realmente iminente. Pensou brevemente em fluídos de embalsamar, flores secas, cravos de ataúde e gramados murchos; mas tais idéias eram bastante distantes da tendência de seu pensamento, e preferiu pensar em Elspeth. Afastou seus fúnebres pensamentos com um conveniente estremecimento.

Muitas vezes pensava em Elspeth, nesses dias. Porém não a esquecia realmente em nenhum momento. Muita gente o chamava de sem-vergonha; porém ele sabia, e sempre haveria de saber, que estavam errados. Diziam que havia rasgado ou partido o coração de doze mulheres, incluindo os de suas duas esposas; e de um modo o suficientemente estranho, incluindo os exageros dos fofoqueiros, o número era correto. Contudo, ele, John Alvington, sabia com certeza que somente uma mulher, a que nada contava entre as doze, havia realmente importado realmente alguma vez em sua vida.

Havia amado a Elspeth e a ninguém mais. As outras mulheres foram todas um erro, ilusões: haviam lhe atraído só porque imaginou, durante períodos variáveis, que havia encontrado nelas algo de Elspeth. Havia sido cruel com elas provavelmente, e com absoluta certeza não lhes havia sido fiel. Porém ao enganá-las, não havia sido muito mais leal à Elspeth?

De algum modo a imagem que tinha dela agora era mais clara, mais do que antes. Como se tivesse sacudido o pó acumulado de um retrato, via com estranha claridade a inquieta ironia de seus olhos e o ligeiro sacudir de seus cabelos castanhos que sempre acompanhava seu sorriso jovial. Era inesperadamente alta para uma pessoa tão semelhante a um duende, porém tanto mais admirável por isso; e ele nunca havia gostado de outra coisa a não ser de mulheres altas.
Com tanta freqüência tinha ficado maravilhado, como ante um fantasma, ao encontrar outra mulher de maneiras similares, similar figura ou expressão de olhos ou cadência de voz; e que absoluta foi sua decepção quando chegou a ver a irrealidade e falsidade do que era parecido. Que irreparavelmente ela, o amor verdadeiro, se havia interposto antes ou depois entre ele e todas as demais.

Começou a recordar coisas que quase havia esquecido, tais como o camafeu que ela havia levado depois do dia em que se conheceram, e um pequeno sinal em seu ombro esquerdo, de que havia olhado numa ocasião quando ela usava um vestido por demais decotado para aquela época. Muito recordava a roupagem lisa e verde-pálido que se aderia tão deliciosamente em sua esbelta silhueta naquela manhã em que ele se foi precipitadamente com um rápido adeus, para não voltar a vê-la...

Nunca, pensava, havia sido sua memória tão boa: seguramente o médico estava equivocado, pois não se havia produzido debilidade alguma de suas faculdades. Era quase impossível que estivesse mortalmente enfermo, quando podia evocar todas as lembranças de Elspeth com tal desenvoltura e clareza.

Agora repassava todos os dias de seu compromisso de sete meses, que podia ter terminado em um ditoso casamento se não tivesse sido por sua propensão a tomar ofensas irracionais, e pela própria explosão de temperamento com que reagia e sua falta de tática conciliatória na disputa crucial. Que próximo, que doloroso resultava tudo. Perguntou a si mesmo que malvado desígnio havia ordenado sua separação e o havia enviado a uma busca vã de um rosto a outro rosto ilusório para o resto de sua vida.

Não recordava, não podia recordar outras mulheres – somente lembrava que havia sonhado de algum modo por um breve espaço de tempo que se pareciam com Elspeth. Outros poderiam considerá-lo um Don Juan – porém ele se considerava um sentimental sem remédio, se é que alguma vez houve algum.

Que ruído era aquele, perguntou a si mesmo. Alguém havia aberto a porta de casa? Devia ser a enfermeira, pois ninguém mais viria a essa hora da tarde.

A enfermeira era uma moça agradável, porém não era como Elspeth.

Tentou virar-se um pouco para poder vê-la, e de alguma maneira conseguiu, graças a um esforço titânico completamente desproporcional ao fraco movimento.

Não era a enfermeira, pois ela ia sempre vestida de um branco imaculado que correspondia à sua profissão. Esta mulher trajava um vestido de cor verde viçoso e agradável, pálido como o verde da água na superfície do mar. Não pôde ver seu rosto, pois permanecia em pé com as costas para a cama; porém havia algo estranhamente familiar naquele vestido, algo que quase não podia recordar, a princípio. Logo, com um claro sobressalto, supôs que se parecia com o vestido que Elspeth levava no dia de sua disputa, o mesmo vestido que havia estado representando um pouco antes. Ninguém usava nunca um vestido de semelhantes medidas e estilo, hoje em dia. Quem em todo o mundo poderia ser? Havia uma curiosa familiaridade com respeito a sua figura, também, pois era bastante alta e esbelta.

A mulher se voltou, e John Alvington viu que era Elspeth – a própria Elspeth da qual se havia separado com um amargo adeus, e que havia morrido sem permitir-lhe sequer vê-la outra vez. E contudo como poderia ser Elspeth, se estava morta a tanto tempo? Logo, por uma questão de lógica, como poderia ela haver morrido alguma vez, posto que estivesse ali, diante dele, naquele momento? Parecia infinitamente preferível crer que estava viva, e ele desejava tanto falar-lhe, porem a voz falhou quando tentou pronunciar seu nome.

Agora pensou que ouvia a porta abrir-se outra vez, e foi consciente de que outra mulher permanecia nas sombras atrás de Elspeth. Essa se adiantou, e observou que trajava um vestido verde, idêntico em cada detalhe àquele que usava sua amada. Ela levantou a cabeça – e o rosto era o de Elspeth, com os mesmos olhos zombadores e boca caprichosa. Porém como podia haver duas Elspeths?

Com profundo desconcerto, tratou de acostumar-se a extravagante idéia; e ainda assim, enquanto lutava com um problema tão incompreensível, uma terceira figura de verde pálido, seguida por uma quarta e uma quinta, entrou e se colocou atrás das duas primeiras. E não foram estas as últimas, pois outras entraram uma a uma, até que o quarto ficou repleto de mulheres, todas elas com os modos e aparência de sua noiva morta.

Nenhuma delas pronunciou uma palavra, porém todas olhavam Alvington com uma expressão na qual parecia agora discernir um gracejo mais profundo que o travesso encanto que uma vez havia encontrado nos olhos de Elspeth.







Ficou muito quieto, lutando com uma obscura e terrível perplexidade. Como podia haver tal multidão de Elspeths, quando ele só podia lembrar de ter conhecido uma? E quantas havia de todo modo? Algo o impulsionou a contá-las, e achou que havia treze fantasmas de verde. E após assegurar-se deste ato, se sentiu sacudido por algo familiar com respeito ao número. Não dizia o povo que ele havia partido o coração de treze mulheres? Ou eram no total somente doze? De qualquer maneira, contando a própria Elspeth, quem realmente havia partido o coração, havia treze.







Então todas as mulheres começaram a agitar seus cabelos, de uma maneira que ele recordava muito bem, e todas elas riram com uma risada ligeira e brincalhona. Poderiam estar rindo dele? Elspeth havia feito isso muitas vezes, porém ele a havia amado com devoção apesar de tudo...







De repente, começou a sentir-se inseguro acerca do numero exato de figuras que enchiam sua morada; pareceu-lhe, em um momento, que eram mais do que havia contado, e depois, que eram menos. Perguntou-se quem dentre elas era a verdadeira Elspeth, porque depois de tudo sentiu confiança de que nunca havia existido uma segunda – só uma série de mulheres que se assemelhavam em aparência e que não eram em realidade como ela de modo algum, uma vez que chegava a conhecê-las.







Finalmente, conforme tratava de contá-las e escrutar os rostos apinhados, todos se tornaram imprecisos, confusos e indefinidos, e quase esqueceu o que estava tratando de fazer...Qual delas era Elspeth? Ou será que havia existido alguma vez uma autêntica Elspeth? Não estava seguro de nada, no final, quando chegou o esquecimento e passou a esse território no qual não existem nem as mulheres, nem os fantasmas, nem o amor e nem os problemas numéricos.







Traduzido por Rogério Silvério de Farias.

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